Morning Pages: A Escrita de Páginas Matinais Como Atividade Terapêutica

Como a técnica originalmente desenvolvida para ajudar artistas em bloqueio criativo se relaciona com a associação livre na Psicanálise

Amanda Aragão
7 min readFeb 20, 2021

Elaborada pela escritora Julia Cameron em seu livro The Artist’s Way (no Brasil, “O Caminho do Artista”), a técnica original chamada de Morning Pages — ou “páginas matinais” — consiste em escrever ao menos três páginas todos os dias pela manhã, registrando no papel absolutamente tudo o que lhe vier à mente, antes de qualquer tarefa do dia.

A Técnica

O fluxo de pensamento é um comportamento inescapável e intrínseco ao nosso cérebro. O objetivo das páginas matinais é o de esvaziar e clarear a sua mente. Talvez leve algumas tentativas para se adaptar a escrevê-los, mas o pensamento contínuo é a dinâmica da nossa mente por natureza.

Não importa o que escreverá, desde que sejam os pensamentos da exata maneira que surgem na sua cabeça. Você pode até mesmo começar com “Não sei o que escrever aqui, não faço ideia de por onde começar…”, no meio da frase lembrar que precisa comprar algo no supermercado e também colocar isso no papel, e assim por diante. Completar o mínimo de três páginas é importante, mas tudo bem se isso não acontecer nas primeiras vezes. Um hábito novo se introduz aos pouquinhos.

Não julgue

Você precisará se desprender do medo do julgamento de outrem — o papel não julgará você. Mais importante, precisa se desprender de seu próprio julgamento. Não importa quão bobo, estupido, meio “maluco”, medíocre ou até maldoso possa lhe parecer o que surge na sua mente e no papel, você não deve julgar, apenas escrever.

“Embora ocasionalmente coloridas, as páginas matinais são frequentemente negativas, constantemente fragmentadas, muitas vezes com autopiedade, repetitivas, afetadas ou infantis, raivosas ou insossas — até mesmo soando bobo. Que bom! […] Todas as coisas raivosas, choronas e medíocres que você escreve pela manhã se interpõem entre você e sua criatividade. Preocupação com o trabalho, a roupa suja, a batida estranha no carro, um olhar estranho do seu amor — essas coisas correm pelo nosso subconsciente e turvam nossos dias. Coloque isso no papel. […] Somos vítimas do nosso próprio perfeccionista internalizado, um desagradável crítico interno e eterno, o Juiz, que reside em nosso cérebro e mantém um fluxo constante de comentários subversivos que muitas vezes são disfarçados de verdade. […] Faça disso uma regra: lembre-se sempre de que as opiniões negativas do Juiz não são a verdade. Isso requer prática. Ao sair da cama e ir direto para o papel todas as manhãs, você aprende a fugir do Juiz.”

Julia Cameron, The Artist’s Way (em tradução livre)

Você tem que ser capaz de colocar até mesmo seus desejos mais “sombrios” no papel. Aqueles dos quais jamais fala e até evita o mero pensamento.

É Um Diário?

Não. Em um diário você conta histórias, eventos, acontecimentos, mesmo que somente para si. Um diário geralmente tem escrita linear, pensada ou cuidadosa, e é feito para manter memórias.

No método das páginas matinais, você deve apenas registrar os pensamentos que aparecem na sua cabeça, sem delineá-los. Já a opção de guardar seus escritos é inteiramente escolha sua. Mas, caso os guarde, não deve reler as páginas depois de escritas, aguardando pelo menos alguns meses para voltar a elas. A intenção é extrair os pensamentos da sua mente, não mantê-los nela. O que for registrado no papel não deverá ser mostrado a ninguém. São seus e apenas seus. Se decidir por manter os escritos como um diário, como registro, guarde-o em segredo e seja cuidadoso(a) com quem saiba da existência dele.

No entanto, essa é apenas uma opção. Como o exercício não é feito para ninguém ler, só você, tenha em mente que suas páginas matinais podem não ser um diário, mas folhas de rascunho que você pode rasgar e jogar fora depois.

Foto: Steve Johnson

Método

Não há maneira errada de fazer.

Não se preocupe com a ortografia ou linearidade do que está sendo escrito. Não escreva devagar, nem “bonito”. Tenha em mente que você não está delineando um texto, mas apenas esvaziando a sua mente, por isso deve escrever os pensamentos enquanto eles passam pela sua cabeça, da maneira que surgirem.

O momento de escrever as suas páginas deve ser um momento calmo e relaxado, destinado a escrever e mais nada, sem distrações ou interrupções. Desligue as notificações e o celular (se possível, mantenha-o longe de você). Para alguns, as páginas matinais são vistas como uma forma de meditação.

Lembre-se de que esse é um tempo seu, seu espaço. Se mora com outras pessoas, peça para que esse momento seja respeitado. O ideal na técnica é praticá-la pela manhã, com o intuito de iniciar nosso dia com uma mente limpa, antes que os acontecimentos cotidianos atravessem ainda mais nossos pensamentos. No entanto, “Páginas Matinais” é apenas um nome. Caso executar o exercício pela manhã não seja possível, faça-o à noite, ou em qualquer momento do dia que for viável para você, desde que não haja interrupções.

Se escrever não vier de maneira natural para você em um primeiro momento, outras maneiras de exercitar a técnica para além da escrita podem ser:

  • Aplicativos de ditado (enquanto fala, o dispositivo escreve tudo o que você dita).
  • Gravação de voz.
  • Gravação de vídeos.

Novamente, não há maneira errada de fazer. A ideia é esvaziar a sua mente, registrando esses pensamentos de alguma maneira, mesmo que apague, jogue fora ou os destrua imediatamente após a finalização do exercício.

O que não se aplica à técnica: Apenas falar em voz alta, sozinho, sem registrar os pensamentos, por exemplo, pois não atinge de maneira satisfatória os objetivos terapêuticos de confrontá-los.

A ideia do exercício é de que você coloque seus pensamentos escritos na sua frente, os veja, olhe pra eles e os confronte. Se gravar áudios, ouça-os assim que terminar a gravação. Se fizer vídeos, assista-os ao encerrar. Essa etapa é muito importante e não pode ser deixada para depois. É nela que está a chave terapêutica do exercício: o enfrentamento de si mesmo.

É importante lembrar que os escritos, áudios ou vídeos só devem ser lidos, ouvidos ou vistos no momento em que foram criados, sendo arquivados ou guardados imediatamente após a finalização do exercício ou, ainda, descartados, deletados ou apagados.

“Coisas que quis dizer, mas nunca disse” (em tradução livre) | Foto: Marc Schaefer

Honestidade

Aqui, encontramos outro benefício das páginas matinais. Se você está mentindo, mesmo que para você mesmo, o escrito no papel pode tornar isso óbvio e ser mais uma maneira de se compreender no percurso para o autoconhecimento.

Se tem vivido uma situação infeliz e mentido para você mesmo quanto à sua satisfação dentro daquela situação, é possível que os escritos nas suas páginas matinais te obriguem a confrontar a realidade e reavaliá-la.

Não minta.

É essencial não reprimir ou deixar de escrever nenhum pensamento que venha à sua mente. Se tem receio de que alguém possa lê-los, destrua-os depois — ato que, em si, poderá também exprimir seu próprio valor terapêutico através da catarse.

Se tiver medo de que alguém vá ler as coisas que escrever, você não será completamente honesto nos seus escritos, e o exercício não funcionará de maneira terapêutica. Assim como na análise, honestidade consigo é a coisa mais importante neste exercício. Por isso, se necessário, sinta a liberdade para jogar tudo fora ao final do exercício.

A Associação Livre Na Psicanálise

O método da associação livre criado por Sigmund Freud consiste em falar livremente ao psicanalista, sob o sigilo analista-paciente, todos os pensamentos que lhe vierem à mente. Eles deverão ser expostos conforme surgirem, sem preocupação com linearidade ou em “fugir do foco”. A consciência não é linear, seus pensamentos também não são. Para Freud, o fluxo não linear de pensamentos e a falta de foco eram, em verdade, essenciais para a terapia, pois através desse jorro psíquico é possível chegar ao inconsciente e construir a compreensão das questões do(a) paciente.

Familiar?

Com o intuito de esvaziar a mente, essa autocompreensão é, em certo nível e pelo enfrentamento de seus pensamentos, um resultado que poderá provir dos exercícios de escrever as páginas matinais.

As Páginas Matinais E O Processo Terapêutico

O exercício, assim como a combinação de associação livre e atenção flutuante na Psicanálise, tem o potencial de revelar aspectos do inconsciente. Assim como no método de associação livre, essas partes desconexas do que foi escrito, ao serem vistas no papel por você, podem ser remontadas e compreendidas de maneira consciente.

“Os eventos em nossas vidas acontecem em uma ordem sequencial no tempo, mas seus significados para nós mesmos encontram sua própria ordem… o fio contínuo da revelação.”

Eudora Welty
(citação retirada do livro The Artist’s Way, em tradução livre)

A técnica de escrever seus pensamentos, no entanto, é meramente um exercício, um método paliativo, podendo contribuir para o desenvolvimento pessoal e autoconhecimento, mas que não resolve problemas, apenas ajuda a “acalmar” a mente.

Na terapia psicanalítica, a função do analista, profissional qualificado com meios e ferramentas para tal, é a de auxiliar o analisando no reconhecimento e mudança de padrões de pensamento e comportamento, sendo um mediador, resolvendo questões psíquicas e guiando o paciente ao encontro de seus próprios interesses e evolução emocional, tendo papel insubstituível.

Portanto, a técnica de “páginas matinais”, apesar de aliada no processo terapêutico, não deve ser considerada um substituto para a terapia.

Texto revisado. Originalmente escrito em 2020, durante a formação em Psicanálise Clínica.

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