O estudo da histeria como contribuição freudiana para a causa feminista

O legado de Freud para o feminismo

Amanda Aragão
5 min readJan 28, 2021

Desde o Egito e ainda na Grécia Antiga, de Hipócrates a Platão e Areteu, a “Histeria” foi cunhada como “Doença das Mulheres”, sendo relacionada diretamente ao útero.

Na Idade Média, além da “falta de casamento” ser considerada uma causa da histeria, o casamento era indicado como tratamento do quadro, pois o sêmen seria cura para a doença.

“Witchcraft at Salem Village” | Domínio público

Logo depois, passa a ser vista como manifestação de possessão demoníaca, podendo ser usada como pretexto para acusar mulheres de bruxaria.

Já no século XIX, as mulheres eram forçadas, dentro da estrutura social da época, a seguirem os mesmos caminhos de esposa, dona de casa e mãe, sem escolha, reproduzindo a vida de suas próprias mães e avós. As jovens que por acaso secretamente ansiassem por outro caminho na vida não tinham voz ou sequer ousavam ter; incapazes de lidar com a impotência de sua situação, adoeciam fisicamente. Como alguns sintomas da então denominada histeria, eram acometidas por tosse, desmaios, paralisias, contrações, sensações de sufocamento, gritos ou incapacidade repentina de falar. O clássico literário Madame Bovary exemplifica em Emma, a personagem principal, um caso de “pequena histeria” da época.

“Une leçon clinique à la Salpêtrière” (1887) — André Brouillet | Domínio público

No fim da era vitoriana, Jean-Martin Charcot era chamado de “Napoleão das histéricas” pelos estudos e tratamentos conduzidos às mulheres no Hospital da Salpêtrière, em Paris. Charcot, tentando provar que o problema da histeria não provinha do orgânico, muito menos era de origem religiosa (nem da falta dela), utilizava uma técnica pregressa de hipnose, induzindo a autossugestão, e tinha sucesso em fazer com que os “sintomas” desaparecessem, mesmo que provisoriamente, durante o atendimento à paciente. Charcot então expõe a técnica como comprovação de que a histeria é uma “doença do cérebro”, uma “neurose” funcional, se recusando a discutir sua derivação da biologia, tendo órgãos genitais ou reprodutivos como causa. Sua interpretação e demonstrações das sessões de hipnose viriam a influenciar Sigmund Freud, que — fascinado — irá se apoderar do conceito de histeria observado por ele com Charcot para falar sobre a origem de tal condição: a angústia.

A histeria foi o primeiro grande interesse de Freud ao estudar os caminhos da psiquê humana, e foi a partir dela que veio a teorizar a Psicanálise, mas logo abandonando a hipnose. Para Freud, a Psicanálise é um modo de falar da angústia.

Freud, junto a Josef Breuer e depois de Charcot, foi um dos primeiros a dissociar a histeria da condição feminina com a publicação de Estudos Sobre a Histeria (1893–1895). Antes da criação da Psicanálise de fato, no livro, os autores expõem o “método catártico”, da terapia através da fala. Foi Breuer quem desenvolveu a “talking cure”; Freud então estudou o método para além de Breuer, desenvolvendo sua teoria.

Freud é assertivo ao afirmar que a “histeria” é de fundo emocional, podendo afetar igualmente homens e mulheres, pois nada é além de sintomas somatizados.

Atriz Sarah Bernhardt em cena | Domínio público

Somatização é quando uma causa psíquica manifesta um sintoma no corpo. Ou seja, quando, por exemplo atual, uma pessoa mentalmente sobrecarregada com o trabalho e problemas pessoais passa a ter dores de cabeça ou torcicolo, aparentemente inexplicáveis e não associados a nenhuma outra doença orgânica; sintomas esses que são curados, também de maneira aparentemente inexplicável, frente ao alívio da situação estressante pela qual passa o indivíduo. Dos ditos sintomas de histeria através dos tempos, entre outros, hoje os compreendemos como características da somatização.

Por isso, o método catártico — que viria a ser a Psicanálise — foi tão eficaz no tratamento dos casos de “histeria” em tempos freudianos. Com o método, as convulsões, gritos e “sintomas” da histeria cessam à medida que as mulheres podem e passam a verbalizar suas angústias, convertendo os sintomas em linguagem. A palavra como ato terapêutico em si.

Assim, é possível hoje entendermos a histeria no século XIX e início do século XX como resultado sintomático da opressão feminina — sem escape ou alívio — das mulheres da época.

Em seus estudos sobre a histeria, pode-se afirmar que a teoria freudiana foi uma contribuição na vindoura e crescente luta para emancipação de mulheres, como clarifica Gayle Rubin em uma visão anacrônica:

“[…] A domesticação da mulher, sob outros nomes, é amplamente discutida na obra de ambos [Claude Lévi-Strauss e Sigmund Freud]. Lê-los possibilita ter uma ideia de um aparato social sistemático que toma essas mulheres como matérias-primas e as molda como mulheres domesticadas. Nem Freud nem Lévi-Strauss veem o próprio trabalho sob este prisma, e certamente nenhum deles olha de forma crítica o processo que descreve. Desse modo, as análises e descrições que oferecem devem ser lidas de forma um tanto análoga […]. Freud e Lévi-Strauss, em certo sentido, assemelham-se a Ricardo e Smith: eles não percebem as implicações do que dizem, nem a crítica implícita que sua obra pode suscitar quando submetida a um olhar feminista. Ainda assim, eles trazem ferramentas conceituais com as quais é possível descrever a parte da vida social em que reside a opressão das mulheres, das minorias sexuais, e de certos aspectos da personalidade humana presente nos indivíduos. […] nos mapas da realidade social elaborados por Freud e Lévi-Strauss há uma acentuada percepção do lugar da sexualidade na sociedade, assim como das profundas diferenças entre as experiências sociais vividas por homens e mulheres.”

- Gayle Rubin, Políticas do Sexo

Posteriormente, com sua teoria sexual, Freud declara como “normais” comportamentos demonizados à época, como “sodomia”, fetichismos e até masturbação, entre outras questões da sexualidade, em total oposição às crenças e opiniões sociais coevas, tendo também inegável influência na emancipação sexual que já começava a aflorar.

Propaganda de medicação para “mulheres histéricas” | Domínio público

Embora socialmente o arcaico estereótipo da histeria feminina ainda encontre enfraquecido escoramento; hoje, a terminologia “histeria” já não é adotada pela maioria dos profissionais éticos, nem mais utilizada como termo diagnóstico.

Apesar da ruptura de tabus, a obra freudiana está marcada por sua época e devemos analisá-la com cuidado, considerando todas as perspectivas de seu legado. Mais à frente, Freud irá conceituar o Complexo de Édipo, além de encontrarmos uma problemática quanto ao estabelecimento da libido como “masculina” e teorização da “passividade feminina”.

Embora não possamos nos apressar a chamar Freud de feminista, a totalidade de seu trabalho e positiva influência para o feminismo — sob olhos críticos — não devem ser desconsideradas.

Texto revisado. Originalmente escrito em 2020, durante a formação em Psicanálise Clínica.

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